Entre a Vila e a Barra

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Mais um recorde quebrado. As chuvas que atingiram o litoral de São Paulo durante o Carnaval de 2023 despejaram o maior volume de água já registrado na história do Brasil. De acordo com o Centro Nacional de Previsão de Monitoramento de Desastres (Cemaden), foram 626 milímetros acumulados em menos de 24 horas no município de São Sebastião. No total, são 252 bilhões de litros de água, o que equivale a 4,4 milhões de litros de água por segundo desabando do céu. A chuva que caiu na Vila do Sahy encheria uma piscina olímpica em 85 segundos. Se toda essa água fosse canalizada para um rio, ele teria três vezes a vazão média das Cataratas do Iguaçu. O recorde anterior em volume de chuva foi no ano passado, quando 241 pessoas morreram depois que Petrópolis recebeu 530 milímetros em 24 horas. Até agora, em São Paulo, mais de 60 pessoas morreram, o mais trágico de todos os números.

Ainda não há consenso se esses temporais em São Paulo foram resultados da mutação climática planetária, mas a meteorologia sabe que o aquecimento dos oceanos produz mais vapor d’água, que por sua vez é o principal fator da formação de nuvens e de chuvas, principalmente em regiões costeiras. E as águas do litoral de São Paulo estavam entre 27ºC e 28ºC, um grau acima da média. Parece pouco, mas já é o suficiente para desequilibrar tudo. O incansável meteorologista Carlos Nobre nos lembra que “se a gente comparar agora com a metade do século passado, já são 50% mais de eventos extremos dessa natureza. Mesmo que a gente não consiga frear o crescimento da temperatura do planeta, que está entre 1,2ºC, esses eventos se tornarão mais frequentes e poderão continuar atingindo mais recordes de intensidade nos próximos 30 anos”.

Basta puxarmos na memória os últimos anos: Petrópolis, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia, para ficar nas chuvas extremas apenas no Brasil. Neste momento, outro evento climático extremo afeta dezenas de cidades e milhões de pessoas no Brasil: a seca que castiga o Rio Grande do Sul e partes da Argentina e Uruguai se estende pelos últimos três anos. Mais uma vez a mutação climática, promovida por nós, manda seu recado: ao mesmo tempo que teremos chuvas mais intensas, temporais arrasadores, teremos também secas mais longas e severas, e tudo isso com maior frequência. Quem resistirá?

Em São Paulo, quem mais sofreu os impactos foram os mais pobres. Vivendo de forma precarizada, eles foram empurrados, ao longo dos anos, para a base de encostas sabidamente vulneráveis. A chuva foi a mesma, mas enquanto na Barra do Sahy casas custam até 12 milhões de reais e as pessoas fugiam dos bloqueios na Rio-Santos de helicóptero, a Vila Do Sahy, núcleo pobre com casas simples e infraestrutura urbana precária, concentrou todas as mortes. Foram os pedreiros, caseiros, domésticas, zeladores, camareiras que perderam as vidas, as casas, os documentos, os pertences. As chuvas tiveram outra ajuda para fazer o estrago que fez: em 2021, um novo Plano Diretor foi aprovado durante a pandemia em São Sebastiao e ampliou os limites de construção, incluindo bairros com riscos de deslizamento e permitindo uma taxa de ocupação total em lotes no centro da cidade, potencializando riscos de alagamento por eliminar a permeabilidade do solo.

A marola promovida pela pandemia de covid-19 é uma pequena mostra do que será o tsunami do desequilíbrio global promovido por tantos gases de efeito estufa despejados na atmosfera nos últimos 100 anos.

Não há nenhum modelo que consiga prever tais impactos. Não há opção. É preciso lutar. É certo que os mais pobres, como sempre, serão os primeiros a sofrerem as consequências. Nada novo considerando a desigualdade em que estamos mergulhados. Mas as consequências chegarão a todos. Espremer o privilégio até o fim ou viver na negação apenas adiará a chegada delas. É preciso encarar a desigualdade e acelerar a mudança de rota. Investir em energia limpa, sistemas alimentares sustentáveis e biotecnologia. O Brasil possui todas as condições objetivas para liderar o mundo. O bonde está passando. É mais rápido e barato consertar o que fizemos de errado aqui. A possibilidade de colonizar um outro planeta ainda está longe.

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