Como o dinheiro do terceiro maior mercado ilegal do planeta se conecta com a destruição de ambientes naturais criando um ambiente propício à transmissão de novos vírus a humanos
A escala da pandemia que atingimos com o coronavírus revelou, entre muitas outras questões, o elo final de um mercado ilegal bilionário: o tráfico de animais silvestres. Os vírus que nos afetam, tem a sua origem em outros animais: aves, porcos, morcegos, dromedários e até mesmo vacas são ou já foram o elo entre nós e um vírus mortal para humanos. Mas, os animais silvestres têm sido a origem da maioria dos surtos, epidemias e agora a pandemia que vivemos nas últimas décadas.
O coronavírus provavelmente tem origem em um morcego, mas passou por um pangolim (ameaçado de extinção e considerado o animal silvestre mais traficado do mundo), e chegou em humanos, provavelmente, em um mercado de animais vivos em Wuhan, na China. Mas, para entender o consumo de animais silvestres na China precisamos voltar a década de 1960. Entre 1958 e 1961, a China viveu uma crise de produção e abastecimento de alimentos conhecida como “A Grande Fome”. Se estima que, nesse período, cerca de 30 milhões de pessoas morreram em função de políticas estatais equivocadas na produção de alimentos, incluindo o incentivo a caça em massa de pardais pela população. Sem pardais, a dispersão de sementes não acontecia mais e os gafanhotos proliferaram, atacando ferozmente plantações. Considerando o desastre, o governo central foi, aos poucos, promovendo a descoletivização dos campos. A partir de então, camponeses começaram a criar animais silvestres em pequena escala, como forma de sustento tendo, inicialmente, o apoio do governo.
Em 1988, a Lei Nacional de Proteção de Animais Silvestres, altera as regras e passa e classificar os animais selvagens como ¨Recursos Naturais da Propriedade do Estado¨, regulamentando quem já produzia esse ¨recurso¨, além de encorajar a domesticação e criação de animais silvestres. Surge, então, uma mega indústria, que reúne animais de ecossistemas distintos, em um mesmo espaço físico e que encobre o comércio ilegal de espécies ameaçadas de extinção como tigres, rinocerontes e pangolins. Não podíamos esperar nada diferente: em 2000, surge o primeiro surto da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave causada pelo coronavírus, a SARS-CoV) na China, que infectou mais de 8.000 pessoas e foi a causa de mais de 750 mortes, em todo o mundo, antes de ser contido. Uma das primeiras medidas tomada pelas autoridades chinesas foi fechar os mercados onde esses animais são negociados. Meses depois de passado o surto, 56 espécies foram autorizadas a serem criadas, inclusive as civetas, animal hospedeiro da SARS. Entre 2004 e 2018, a indústria de criação de animais silvestres na China aumentou 40%, tendo seu consumo associado ao estilo de vida fitness, aumento da libido, melhorias estéticas e tratamentos de saúde através da medicina tradicional. A mesma medicina que hoje tem receitado pó de chifre de rinoceronte e bile de urso como remédio para tratar a COVID-19. No fim de fevereiro, o governo chinês divulgou a proibição temporária de toda a criação e o consumo de “animais silvestres terrestres de importante valor ecológico, científico e social”, mais uma vez.
Policial observa civeta selvagem capturada por fazendeiro em Wuhan, na China Foto: AFP via Getty Images
Por ser um mercado ilegal, as estimativas variam entre 10 e 15 bilhões de dólares por ano com relação ao movimento do tráfico de animais, subindo para o terceiro lugar no pódio de atividades ilegais do mundo, só perdendo para os tráficos de armas e de drogas. Já a participação do Brasil, varia de 5% a 70% do total mundial. Isto é, cerca de 38 milhões podem estar sendo retirados da natureza por ano só aqui. Desses, 90% são pássaros. Estima-se que de 10 animais traficados, apenas um sobreviva. Um movimento de até 2,5 bilhões de dólares.
Em nossos vizinhos amazônicos, como Suriname e Bolívia, já se mapeou a caça de onças para abastecer o mercado chinês de medicina oriental que, antes, usava partes do tigre para curar desde ressacas a câncer. O preço final de uma onça na China, entre 2000 a 3000 dólares por animal, contrasta com o preço pago para caçadores no Suriname, fronteira com o Amapá, de 260 dólares, de acordo a uma investigação feita pela World Animal Protection. Se preferir, o caçador pode receber um carro novo ou 20 gramas de ouro.
Desmembrada, cozida e seca, em um processo que leva até sete dias, a “pasta de onça”, creme negro, fica mais fácil de ser transportado ilegalmente em tubos e é usado para curar artrite, aumentar a vitalidade e eliminar toxinas do corpo. Os tubos chegam a custar 3 mil dólares e cada animal rende entre 20 a 30 tubos, enquanto garras e dentes custam entre 67 e 1 200 dólares, se adornados com ouro. Já a pele pode ser trocada por armas de fogo na fronteira ou vendida por 500 reais. Sim, reais, pois caçadores brasileiros já estão conectados ao tráfico internacional de animais silvestres, de acordo com indícios encontrados em pesquisa da WWF nas Guianas.
Onça-pintada morta provavelmente para alimentar o mercado asiático. Foto: Proteção Animal Mundial
Assim como na China, o mercado brasileiro legal de animais silvestres vem sendo usado também para encobrir atividade ilegal de retirada de animais da natureza. Uma investigação liderada pelo IBAMA, cruzou dados do sistema de informações alimentado pelos criadores legalizados com dados reunidos em operações de fiscalização e encontrou incompatibilidade em 80% das anilhas (anéis de identificação) dos animais. Ou seja, os animais identificados como nascidos e criados em cativeiro na verdade tinham sido capturados adultos na natureza.
Além das fraudes, há ainda a forma branda com que são tratadas as penas para os traficantes, que ficam impunes dos crimes que cometem. A Lei de Crimes Ambientais (9.605 de 1998), criminaliza a conduta de “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre” sem autorização, com pena de seis meses a um ano de prisão, mas não cita o tráfico de animais como crime. A prática corrente para crimes que preveem menos de quatro anos de prisão é aplicar penas alternativas, como serviços comunitários. Isso, faz da impunidade a regra. Traficantes presos reiteradas vezes pagam pequenas multas e seguem soltos cometendo os mesmos crimes, dilapidando a nossa biodiversidade.
Foto: Veja
O tráfico de animais no Brasil, se aproveitando da falta de informação da população quanto as regras de possuir animais silvestres como pets, se digitalizou nos últimos anos e passou, em parte, para as redes sociais. Em 2018, o IBAMA realizou uma operação na internet e encontrou 1277 animais à venda nas redes sociais, aplicou meio milhão de reais em multas, resgatou 13 animais e cumpriu mandados de busca e apreensão em 15 estados detendo 12 pessoas. Quase todas (85%) atuavam no Facebook, onde qualquer cidadão consegue encontrar facilmente anúncios de venda de animais silvestres.
Para evitar a impunidade dos traficantes segue parado na Câmara dos Deputados, desde 2003, o projeto de lei 347 do Deputado Federal Zequinha Sarney do Partido Verde, que torna o tráfico de animais um crime qualificado. Apesar de tramitar em regime de urgência desde 2016, ele ainda não foi votado. Em paralelo, há uma proposta a ser votada pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) que pode piorar a situação: reduzir a documentação necessária para o transporte de animais no país.
Outro elo cada vez mais precário são os Centros de Triagem de Animais Silvestres, os CETAS. Atualmente, estão na maioria dos casos, sob a responsabilidade do IBAMA, mas em negociação para que Estados assumam. É para esses centros que os animais são levados quando resgatados das mãos de traficantes para se recuperarem e, quando possível, serem devolvidos a natureza. O estado da maioria dos CETAS é de falta de equipes e infraestrutura precária.
Na Bahia, a região de Feira de Santana, é uma das principais rotas de tráfico de animais do Brasil. Em 2005, a Comissão Parlamentar da Biopirataria listou 11 rotas rodoviárias de tráfico no País. Destas, seis tinham a Bahia como ponto de partida. A fauna rica, o vasto território cortado por muitas estradas e uma fiscalização precária contribuem para o quadro. O caso do CETAS em Salvador é emblemático. Por descumprimento de acordo entre IBAMA e INEMA (que não assumiu a rede de CETAS conforme os termos), o centro passou um período sem receber novos animais resgatados. O país vivia casos de febre amarela urbana e muitos macacos passaram a ser alvo de ataques da população, apesar de serem bioindicadores da existência do mosquito e não hospedeiros do vírus. Como o CETAS não recebia os animais resgatados pela Guarda Municipal, que possui um grupamento ambiental, um elo importante nas políticas de saúde pública foi interrompido. Atualmente, o CETAS segue em precariedade na capital baiana. Denunciada a situação pelo Partido Verde de Salvador ao Ministério Público Estadual, até hoje a investigação não apontou solução ou sequer ouviu as partes envolvidas.
Foto: Arquivo pessoal
Esse volume de animais sendo retirados de seus ambientes naturais desequilibra ecossistemas inteiros. Mudanças na frutificação de árvores e consequente redução da vitalidade e biodiversidade desses ambientes promovem migrações de espécies forçando uma convivência entre animais que não se encontrariam normalmente na natureza. Temos tudo que é necessário para o pulo de vírus para humanos. A natureza é uma grande rede. Nada acontece por acaso.
Somos a nação que detém a maior biodiversidade do planeta. Algo que deveria ser considero fator estratégico segue sendo dilapidado com velocidade. Plantamos boi no lugar de florestas, que também podem ser chamadas de reserva incalculável de alimento para um dos pilares da nova economia: a biotecnologia. Entregamos nosso ouro por uns trocados em troca de boi e soja. Enquanto isso, iniciativas do Governo Federal buscam regularizar terras de grileiros e criminosos nos biomas brasileiros e uma fala sincera do anti-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, revelou o que já sabíamos: eles querem passar uma boiada em cima da floresta.