Há tempos soam alertas da ciência sobre a relação entre as doenças infectocontagiosas e a degradação ambiental provocada por modelos insustentáveis de desenvolvimento. Mas só uma emergência da gravidade de uma pandemia para evidenciar o quanto a saúde econômica de uma cidade, um país, do planeta depende da saúde sanitária e do equilíbrio ecológico.
Em Salvador, temos ecoado este alerta na luta para impedir que avenidas e edifícios tomem lugar no Vale Encantado de Patamares, uma das áreas do amplo programa de novos parques desenvolvido pela Prefeitura de Salvador. O Vale é um importante remanescente de Mata Atlântica em área pública, que conecta o Parque de Pituaçu e a Mata do Cascão aos demais trechos de floresta ainda existentes na cidade, como os da Área de Proteção Ambiental Joanes e Ipitanga
Por atuar como um refúgio de vida silvestre, a preservação do Vale Encantado é crucial para a saúde sanitária de Salvador e, em consequência, para o desenvolvimento sustentado de sua economia. A manutenção de habitats naturais reduz o risco das doenças transmitidas de animais para humanos se espalharem com facilidade, como demonstra o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
Basta lembrar a relação direta entre destruição de habitats naturais e doenças emergentes geradoras de epidemias recentes, como Ebola, gripe aviária, febre do Vale do Rift, febre do Nilo Ocidental e Zika Vírus: todas passadas de animais para pessoas. A origem da Covid-19 ainda não está totalmente esclarecida, mas a transmissão zoonótica é de novo a mais provável. O foco inicial em Wuhan, na China, foi um mercado de animais, muitos deles retirados da natureza.
O Vale Encantado abriga 76% de todas as espécies de plantas registradas na Grande Salvador e inúmeras espécies de animais ameaçadas de extinção, endêmicas da Mata Atlântica e migratórias, além de ser um dos poucos lugares da cidade com nascentes, brejos, lagoas e rios livres de esgotos e poluição. Garantir a existência de áreas verdes dessa importância é a melhor forma de se evitar, localmente, a emersão e propagação de vírus causadores de epidemias.
Se no pós-pandemia do Covid-19 prevalecer a racionalidade, espaço de natureza urbana como o Vale Encantado poderá assumir, de vez, a sua vocação de ser um grande centro de visitação e educação ambiental, e também um grande laboratório à céu aberto para pesquisas científicas, como já vem acontecendo.
A geração de empregos, negócios e renda é outro ponto fundamental. O turismo ecológico injetou quase 4 bilhões de dólares na economia da pequena Costa Rica, especialmente focado na visitação de seus parques. Ademais, em toda parte, investimento em infraestrutura verde se integra ao setor da construção civil, valorizando futuros produtos imobiliários.
Soma-se nesta conta o valor monetário dos serviços ecossistêmicos, como o controle da poluição e qualidade do ar, redução do calor e melhoria do microclima, drenagem de águas pluviais que evitam alagamentos. No Vale Encantado, tomando como base estudos realizados em ecossistemas urbanos temperados e bem menos biodiversos que a Mata Atlântica, esse ganho pode ser minimamente estimado em cerca de 6 milhões de reais por ano.
A lição do novo coronavírus deixou claro para todo mundo que nossa conexão com a natureza não tem hierarquia, é de codepêndencia. Seres humanos e animais são parceiros na busca por um modelo de desenvolvimento mais justo e sustentável. A natureza nos mostra mais uma vez que somente com cooperação, agindo em rede e preservando a biodiversidade, nossa espécie poderá sobreviver nesse Planeta. Temos a oportunidade de mostrar que entendemos a mensagem e transformar o Vale Encantado no 1o Refúgio de Vida Silvestre de Salvador.
Artigo produzido por André Fraga originalmente publicado na edição impressa da Tribuna da Bahia em 28/03/2020