“Enquanto houver guerra, há esperança”, dizia Pietro Chiocca, traficante de armas interpretado por Alberto Sordi, ao seu assistente sempre que ele descobria um novo conflito na África ou Oriente Médio. A frase nomeia o filme original em italiano “Finché c’è guerra c’è speranza”, de 1974.
Enquanto lidera uma missão de paz no Haiti, o Brasil se destaca como o quarto maior exportador de armas do mundo, fabricando inclusive munições para armas que a indústria interna não produz. De acordo com o relatório As Armas e o Mundo da organização Small Arms Survey, que monitora conflitos armados e o comércio de armas de fogo no mundo, só ficamos atrás dos Estados Unidos, Itália e Alemanha quando o assunto é exportação de revólveres, pistolas, metralhadores, fuzis, lança-granadas, artilharia anti-tanque, munições e morteiros. Estamos à frente de países como a Rússia, fabricante da AK 47 e a China que tem o maior exército regular do planeta. De acordo com o relatório, o Brasil é o único país no ranking que não é transparente quando o assunto é exportação de armas: ninguém sabe ao certo pra onde vai, quem compra e quanto compra das armas brasileiras.
Nossas armas podem estar sendo usadas por milícias separatistas, grupos paramilitares, bandos terroristas, governos autoritários, violando Direitos Humanos e potencializando conflitos ao redor do mundo. Em 2011 o país não entregou à ONU o relatório de suas transferências de armas, mesmo sendo signatário da ATT, tratado internacional que regula comércio de armas. Os poucos dados mostram que o Brasil é o segundo maior fornecedor de armas pra a Venezuela, país que atinge a alarmante taxa de 55,4 homicídios por 100.000 habitantes, sendo atualmente o mais violento do mundo. Armas brasileiras também abastecem os conflitos no Iêmen. A produção e circulação de armas descontrolada faz com que elas possam parar nas mão de fundamentalistas como o Estado Islâmico ou o Boko Haran por exemplo, e usadas em atos terroristas com centenas de morte como os de Paris e Quênia.
Essa indústria exportadora de violência mira agora seus negócios no mercado interno. Financia a flexibilização do Estatuto do Desarmamento que, de acordo com o Mapa da Violência 2015, salvou mais de 160.036 vidas desde sua sanção em 2003, sendo 113.071 de jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos. Entre 1993 e 2003 os homicídios com arma de fogo cresceram 7,8% ao ano, chegando a 36.115. Se fosse mantida essa progressão, teríamos em 2012, 71.118 vítimas fatais de armas de fogo, no entanto foram registradas 40.077 mortes, 1% de crescimento, contra os 7,8% de antes do Estatuto do Desarmamento. Mesmo assim ainda estamos à frente de países como Iraque, que vive um pós guerra frágil, e México, com uma eterna briga entre cartéis de nacotraficantes, quando o assunto é taxa de homicídios. Aqui 20,7 pessoas morrem a cada 100.000 pessoas, enquanto no Iraque a taxa está em 6,3, e no México 13,6.
Em 2006, a CPI do Tráfico de Armas da Câmara, diz em seu relatório final que “55% das armas [encontradas com criminosos] rastreadas (…) foram legalmente vendidas, antes de caírem na ilegalidade. Destrói-se o mito de que as armas vendidas a cidadãos de bem nada têm a ver com as armas dos criminosos”. Essas armas e munições têm alvo. Enquanto o número de pessoas brancas mortas por arma de fogo caiu de 14,5 mortes por 100.000 habitantes para 11,8, (23%) entre 2003 e 2012, a quantidade de vítimas negras aumentou 14,1% saltando de 24,9 para 28,5. Vivemos um holocausto que tem cor, idade e sexo.
Flexibilizar o Estatuto do Desarmamento, é um caminho para a consolidação desse estado de guerra que vive o país. Todas as evidências e dados mostram que a circulação de armas de fogo, registradas ou não, potencializa o número de mortes. Como o motociclista Sílvio Ricardo de Andrade Silva, 41 anos, assassinado depois de esbarrar no retrovisor de um veículo no trânsito. O motorista sacou uma pistola, fez diversos disparos pelas costas e fugiu do local. Se ele não tivesse uma arma provavelmente Sílvio estaria vivo e a solução teria sido na justiça.
A paz não pode ser uma palavra bonita nos discursos.
O mundo gastou U$ 1,75 trilhão em armas em 2013, de acordo com levantamento do Stockholm International Peace Research Institute. Em dezembro 193 países estarão reunidos para encontrar um acordo que possa fazer o planeta caminhar no sentido da adaptação as mudanças climáticas. A grande pergunta é sempre de onde virá o dinheiro para financiar essa transição. Por que não um corte linear de 20% em todos os orçamentos militares? Precisamos deixar de ser protagonistas da geopolítica da violência e sermos protagonistas da geopolítica da paz.
Artigo originalmente publicado na edição de 24/11/2015 do Jornal Correio.