No longínquo ano de 2004, eu, então militante estudantil, assisti o documentário sobre uma tentativa de golpe fracassado na Venezuela. Em “A Revolução não será Televisionada”, documentaristas irlandeses que estavam na Venezuela, tiveram a oportunidade de acompanhar passo-a-passo o golpe, mostrando o envolvimento da mídia venezuelana, o viés golpista da maior rede de TV e o envolvimento dos Estados Unidos, que tentou imputar ao então presidente Hugo Chávez, um golpe que durou 48 horas em 2002. Após grande reação popular, Chávez voltou ao palácio presidencial e retomou o controle. Naquela época o acesso a filmes e documentários não era como hoje, em que um clique no YouTube abre uma porta com milhares de possibilidades, o que fez do filme um cult entre a militância democrática, e ajudou a transformar Chávez em uma figura de destaque, ativando nosso sentimento anti-imperialista e anticolonialista, mesmo que ele próprio tenha tentado, por duas vezes, efetivar um golpe militar em 1992. Preso, recebeu o perdão presidencial em 1994, e seis anos depois foi eleito presidente, já sem uniforme militar, com terno e gravata, em uma Venezuela submersa no caos, com a população totalmente desacreditada nos partidos e políticos tradicionais.
A mais antiga democracia da América do Sul, passou então a ter Chávez, como presidente pelos 14 anos seguintes, após seguidas mudanças na constituição que permitiram reeleições ilimitadas e deram mais poder a figura do presidente, desequilibrando a relação com os outros poderes. Chávez só deixou a presidência pouco antes de morrer, em 2013, sendo sucedido por Nicolas Maduro, que governa a Venezuela por decreto, com poderes especiais, além do apoio de milícias armadas. Nesse ponto a Venezuela já tinha perdido alguns elementos de uma democracia saudável com forte culto a personalidade de seus “líderes máximos”, limitações na liberdade de imprensa, ataque a direitos humanos e controle da livre organização. Mas piorou. A economia se deteriorou: entre 2013 e 2017 o PIB do país, um dos maiores produtores de petróleo do mundo, retraiu 37%! A inflação chegou a impensáveis 1.000.000%, ocasionando um aumento constante e acelerado dos preços de itens de consumo básicos, quase impossíveis de serem encontrados nos mercados do país. Lá, dinheiro já não se conta, se pesa. Como gasolina não satisfaz o estômago, o povo venezuelano passa fome, sentado embaixo de uma das maiores reservas de petróleo do mundo. O socialismo do século 21, com cabeça desenvolvimentista do século 19 não conseguiu romper com o modelo rentista petroleiro, muito menos investiu os petrodólares numa mudança de rumo econômico que os fizesse passar por crises com menos solavancos. Um bom retrato do cotidiano por lá é a reportagem “Noticias de Maracaibo: o dia a dia da crise venezuelana”, escrita por Paula Rámon na edição 130 da revista Piauí, que apenas com o relato do cotidiano de sua mãe e sua tentativa diária de sobreviver em meio a escassez de tudo, da desagregação familiar causada pela crise e da violência urbana galopante. A Venezuela vive surtos de doenças como malária, difteria, sarampo enquanto a mortalidade infantil atinge recordes e o IDH despenca.
Um outro elemento é muito característico dessa Venezuela de Chávez e Maduro: o culto a Símon Bolívar. Bolívar é certamente um dos maiores heróis da América Latina, liderando a libertação da Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela, do colonialismo espanhol. Defendia a integração da América Hispânica em todas as frentes: economia, energia, educação, saúde. Morreu jovem deixando suas ideias principais em escritos como a Carta de Jamaica, o Discurso de Angostura e o Manifesto de Cartagena, que hoje servem para os bolivarianos promoverem interpretações enviesadas, sequestrando a figura de um dos homens mais importantes da nossa história.
Dois monumentos construídos em homenagem a Bolívar simbolizam o desespero dos venezuelanos com a atual situação de seu país. Um é a Ponte Simon Bolívar, que liga a cidade colombiana de Cúcuta à cidade venezuelana de San Antonio, e passa o dia apinhada de gente fugindo do caos que se transformou o país. Estima-se que, quando a fronteira estava aberta, cerca de 35 mil pessoas deixavam a Venezuela pela ponte diariamente. Para eles, os 300 metros da ponte eram a distância exata para a esperança de ter uma vida digna. O outro monumento é a praça Simon Bolívar, que fica em Boa Vista, Roraima. Atualmente vivem em Boa Vista 40 mil imigrantes venezuelanos, o que representou um aumento de 10% da população local. Muitos deles viveram algum tempo na praça que leva o nome do revolucionário e que já chegou a hospedar, de forma precária, mais de 1200 pessoas, entre recém-nascidos e idosos que chegavam vindo pela chamada “Rota da Fome”, o caminho seguido pelos imigrantes pela BR 174 ligando Paracaima a Boa Vista. Segundo as Nações Unidas, 2,3 milhões de pessoas já deixaram a Venezuela, 7% da população do país.
Esta Venezuela, paralisada por um impasse político que mata seu povo de fome, não é a Venezuela de Simon Bolívar.
Artigo originalmente publicado em 10/06/2019 no site Bahia Notícias.